Por Taisa Helena P. Palhares
Se alguém em nossos dias quisesse descobrir na produção artística contemporânea a manifestação dos conceitos de beleza forjados por nossa cultura, sua tarefa com certeza seria malograda. Sua busca teria maior sucesso se analisasse os cartazes publicitários, as revistas, as produções televisivas, a moda, ou seja, se recorresse a toda produção do mass media, pois há muito tempo a Arte deixou de ter a supremacia neste assunto. Tentar alcançar hoje uma noção mais ou menos nítida de Belo não implica, como na época moderna, voltar-se para as artes.
Essa situação revela algo que na maior parte do tempo é esquecido pelo senso comum: tanto a Arte quanto o Belo são categorias históricas. E mais, a noção tão difundida de Belas-Artes só se consolida nos século XVIII e XIX. No mundo antigo, a arte é, enquanto techné, qualquer atividade humana que implica um determinado saber fazer ordenado, uma habilidade característica para execução de uma coisa. O que distingue, por exemplo, a pintura da agricultura neste caso é que a primeira é uma arte da imitação, enquanto a segunda é produtiva. Para Platão, quem imita não possui um saber propriamente dito, logo sua arte nem será verdadeiramente uma arte. Além disso, o pintor e o escultor imitam sobretudo a aparência das coisas, dos seres vivos, da natureza. Eles produzem uma representação distorcida daquilo que em si já é uma imagem das Idéias, cujo conhecimento só pode se dar mediante o pensamento racional. Como conseqüência, em sua república ideal o filósofo grego resolve banir todos os artistas imitativos.
Por outro lado, durante a Antigüidade e Idade Média se constrói uma rica metafísica do Belo que será fundamental para compreensão do Belo artístico a partir do Renascimento. Sob influência do pensamento de Pitágoras, para quem o princípio de todas as coisas é o número, o Belo será associado a conceitos como ordem, proporção, harmonia, simetria e forma. Do mesmo modo que um corpo belo ou uma bela flor revelam a ordenação matemática do mundo, o belo na arte deve guiar-se pela proporção matemática e pela simetria. Para tradição pitagórica, o exemplo a ser seguido é o do belo natural: a harmonia do cosmo e da natureza.
Uma outra relação importante efetuada pelos antigos é a associação entre o conceito de Belo e as noções de Verdade e Bem. Nesse sentido, será belo tudo o que é verdadeiro, justo e bom. Para o pensamento cristão, Deus como a Verdade e o Bem em si, é também identificado ao Belo em si. A corporificação da beleza no mundo nada mais é do que a manifestação da divindade. Essas breves observações apontam para o valor ontológico do belo no pensamento pré-moderno. A qualificação estética do belo representa, na história ocidental das idéias, uma desvalorização de sua valência original.
Contudo, há de se notar que a exigência de observação do belo natural como origem do belo artístico já vinha sendo questionada por alguns pensadores. Durante o Renascimento, torna-se muito popular e comentada a seguinte história sobre o pintor Zêuxis: tendo de representar Helena, ele reúne cinco jovens belas e escolhe de cada uma os aspectos mais belos, compondo-os numa imagem que não tem equivalência na natureza. Por outro lado, Cícero explica que Fídias, ao esculpir seu Zeus, não se baseava em um indivíduo real, mas numa idéia de beleza presente em sua mente. Segundo Plotino, as artes não imitam as coisas visíveis, antes se elevam às formas ideais, das quais decorre a própria natureza. As discussões sobre essas histórias indicam o movimento, fundamental para compreender a concepção de Arte do Renascimento, de valorização da atividade artística como cosa mentale, como disse Leornado da Vinci, em primeiro lugar, e da relação intrínseca entre belo e arte. Na verdade, a partir de agora, o artista deve se basear em uma Idea, uma forma a priori, ou no Cânone, obra na qual se encarnam todas as regras da arte, como uma espécie de lei. A produção pictórica de Rafael é o exemplo mais cabal desses pensamentos, o grande arquétipo de todo Classicismo posterior, no qual vingará de vez o conceito de Belo Ideal (Rafael, Nossa Senhora Sistina, 1513-14, Gemäldegalerie, Dresden).
Uma das mais importantes transformações na história do pensamento sobre o belo artístico no Ocidente ocorre no final do século XVIII com o livro Crítica da Faculdade do Juízo (1790) do filósofo Immanuel Kant. Nele, Kant dá forma cabal a uma nova sensibilidade que tentava entender o papel do gosto no julgamento artístico. Neste momento, o belo, que antes era um atributo das coisas ou das obras de arte, passa a ser a experiência de um prazer desinteressado. Essa guinada subjetiva do conceito irá alimentar grande parte da estética e da arte modernas. Ela representa também o ocaso definitivo das poéticas dogmáticas e seus cânones acadêmicos.
Paralelamente, outros valores conquistam legitimidade no campo artístico. Tudo o que parecia ter sido condenado pelo ideal clássico começa a receber uma nova avaliação: o informe, o grotesco, o estranho, o tenebroso, o feio, o diferente, o ilimitado, o desproporcional, o obscuro são defendidos enquanto possíveis valores estéticos. O Belo vai perdendo espaço para noção de Sublime no espírito dos artistas. Não que esses atributos tenham ficado ausentes da história da arte até então. Basta pensarmos nos movimentos maneirista e barroco, em Caravaggio e Rembrandt, para citarmos dois exemplos mais conhecidos. Ambos transgrediram as convenções e costumes em suas figuras realistas muitas vezes disformes nas quais se reconhece uma busca da verdade e o desprezo pelo ideal canônico de beleza (imagens). Não por acaso, eles estabeleceram afinidades com o trabalho dos pintores do século XIX.
É exatamente na segunda metade daquele século que o filósofo alemão Friedrich Nietzsche irá teorizar, em O Nascimento da tragédia no espírito da música, sobre a duplicidade constitutiva da cultura ocidental. Para ele, já no espírito grego, coloca-se a oposição entre um impulso comtemplativo-formal (o apolíneo) e um doloroso e obscuro impulso dissoluto-extático (o dionisíaco). No mesmo momento, o Romantismo procura, no que provavelmente representa a última grande teorização sobre o conceito de Belo artístico, acolher numa espécie de co-presença essas oposições. Para concepção romântica de beleza finito e infinito, vida e morte, eterno e transitório, totalidade e fragmento, razão e coração são qualidades que devem conviver em dinamismo constante na obra de arte. O poeta e crítico de arte francês Charles Baudelaire é quem de forma lapidar apresenta essa nova concepção de beleza no ensaio O pintor da vida moderna: “O belo é sempre e inevitavelmente uma dupla composição, ainda que a impressão que ele produz seja uma só (...) é feito de um elemento eterno, invariável, cuja quantidade é extremamente difícil de ser determinada, e de um elemento relativo, circunstancial, que será, vamos dizer assim, sucessivamente ou tudo junto, a época, a moda, a moral e a paixão. Sem esse segundo elemento, que representa algo como a cobertura divertida, saltitante, aperitiva, do divino bolo, o primeiro elemento seria indigesto, impossível de ser apreciado, não adaptado e não apropriado à natureza humana. Duvido que se encontre uma amostra qualquer de beleza que não possua esses dois elementos”. Pois, “o belo é sempre bizarro”, ele “contém sempre um pouco de estranheza, que o faz ser particularmente Belo”, afirma o poeta em outro momento.
O pintor E. Manet será o responsável por dar corpo a essa noção de beleza em sua Vênus moderna, Olympia, pintada em 1863. Provocador, Manet retoma o cânone clássico da Vênus de Urbino de Ticiano para metamorfoseá-la na figura de uma mulher venal. Nessa tela, a beleza desce de seu céu metafísico, transcendente, para habitar as coisas mais prosaicas e mundanas. Obra-manifesto, Olympia é definitivamente o maior ícone da beleza moderna.
No século XX, o conceito de belo é definitivamente desvalorizado no âmbito da arte (e provavelmente por esse motivo tenha migrado para outras “regiões”). O que não significa que o público tenha abdicado completamente de uma noção conservadora de beleza em seus julgamentos estéticos. Na verdade, é conhecida a péssima recepção que as pinturas de H. Matisse encontravam em sua época. Após a primeira apresentação pública de uma de suas obras-primas, Dança (II) (1910), a reação foi de espanto e horror, sendo que os adjetivos utilizados para classificá-la foram: primitiva, grotesca, diabólica, bárbara e canibalesca (naturalmente em sentido pejorativo).
Evidentemente, uma história de mais de dois mil anos não pode ser apagada da noite para o dia. Quando afirmamos que o Belo se enfraquece enquanto valor estético ou idéia reguladora não quer dizer que ele não esteja presente aqui e acolá. Contudo, o que parece não existir é uma nova concepção, algo que seja próprio do momento contemporâneo. O que há sim, é uma restituição de algumas das idéias forjadas no decorrer da história. Uma espécie de sobrevida que irrompe nos locais os mais inesperados (pensa-se aqui, por exemplo, na arte abstrato-geométrica de Mondrian). Voltando ao nosso inquiridor inicial, talvez o grande desafio fosse refletir, a partir da produção exemplar de um artista contemporâneo como é o caso do norte-americano Matthew Barney, sobre os caminhos às vezes inusuais da sensibilidade atual, habituada ao poder de recriação e modificação sem limites das formas naturais, neste caso do próprio corpo humano.
Taisa Helena P. Palhares é graduada em Filosofia pela Universidade de São Paulo, onde desenvolve tese de doutoramento desde 2005. Recentemente publicou o livro Aura: a crise da arte em Walter Benjamin (Editora Barracuda, Fapesp, 2006).
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quinta-feira, 2 de outubro de 2008
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